Que a nossa realidade é hoje diferente já ninguém tem dúvidas. As dúvidas acumulam-se sim à volta do que vai ser diferente, particularmente nas coisas das quais a nossa vida depende. Esta nova normalidade é cheia de medos, desconfiança, incerteza, insegurança, …. Tal como o impacto do surgimento desta nova doença, também esta nova realidade que agora surge a todos alcança.
Se estes tempos foram para uma boa parte das pessoas um verdadeiro teste emocional, foram seguramente mais difíceis para aqueles que, por diversos motivos, se encontram numa situação de fragilidade. Tal é o caso dos doentes oncológicos.
No momento em que lutam contra uma doença potencialmente fatal e onde já vivem com sentimentos de ansiedade e incerteza junto com os eventuais efeitos secundários dos tratamentos, têm agora que mobilizar mais recursos perante esta nova doença, perante o isolamento e ajuste às suas rotinas, de si, já fortemente perturbadas pela doença oncológica.
Encontram-se, assim, numa condição de duplo risco, pela maior vulnerabilidade física à doença e elevado risco de perturbação emocional.
A este risco adiciona-se um terceiro. Por todo o país milhares de consultas e exames de diagnóstico foram cancelados e adiados. Exames e consultas que teriam necessariamente resultado em diagnósticos estimando-se que durantes estes meses, milhares de cancros tenham ficado por diagnosticar. Também estes são doentes oncológicos. Estes que por tudo o que se tem passado vão ser tratados mais tarde com potenciais consequências nas suas vidas.
Por toda a imprensa surgem chamadas de atenção de especialistas das mais variadas áreas para outras potenciais epidemias. Saúde mental, tuberculose e muitas outras doenças associadas à não vacinação.
“Não deixa de ser extraordinário que no momento em que no mundo se anseia tanto por uma vacina, estejamos tão prontos a abdicar das que já temos em prol do medo.”
Durante este período de confinamento os tratamentos oncológicos não foram interrompidos tendo sido considerados como absolutamente essenciais pela Direcção Geral da Saúde (DGS). Por todo o país continuaram a decorrer cirurgias oncológicas, tratamentos de quimioterapia e tratamentos de radioterapia.
Porém, não da forma habitual.
As medidas de protecção individual recomendadas pela DGS têm um paralelo partilhado com a radiação. A grande filosofia de segurança dentro de um serviço de radioterapia vem do corpo de conhecimento a que chamamos protecção radiológica. Esta encontra-se divida por várias áreas do saber, mas assenta em três grandes pilares. Tempo, distância e barreiras.
A exposição a uma fonte de radiação deve acontecer sempre durante o menor tempo possível, face a uma fonte de radiação deve-se sempre guardar a maior distância possível e sempre que possível usar barreiras entre nós e a fonte de radiação. Troquemos fonte de radiação por vírus e temos um casamento perfeito.
Por isso, se na sua nova realidade se encontram tratamentos de radioterapia aquilo que lá vai encontrar são na verdade as mesmas regras de segurança que sempre nos nortearam na nossa actividade. Só que desta vez aplicadas a um agente biológico – vírus – por oposição ao agente físico – radiação.
Assim, do lado do tempo servem como exemplo as consultas, em que algumas delas poderão não acontecer se assim não o necessitar e os horários entre tratamentos mais desfasados para que não se cruze com outras pessoas na sala de espera.
Do lado da distância encontrará vias de acesso e de saída ao serviço de forma a manter as pessoas afastadas ou cadeiras na sala de espera com uso interdito de modo a promover essa mesma distância.
Por fim, do lado das barreiras encontrará vidros nos balcões de atendimento e claro os já famosos equipamentos de protecção individual. Máscaras, aventais, luvas e viseiras ocuparam o lugar daquilo que antes podia ser visto e tocado.
Embora necessários, os equipamentos de protecção individual têm uma terrível consequência. O amparo passou a ser mais difícil, o conforto deixou de ser transmitido pelo toque e os sorrisos trocados ficam agora escondidos. No entanto, embora atrás de uma viseira, os olhos não deixaram de mostrar empatia e compaixão e, acima de tudo, não deixaram de sorrir.
Embora um tudo nada fisicamente mais distantes, permanecemos com os nossos doentes agora mais que nunca e permanecem também aqueles que foram sempre os nossos valores enquanto profissionais. Por trás de toda aquela panóplia de equipamentos continuamos a ser o que sempre fomos. Continuamos a amparar, continuamos a tocar, continuamos a sorrir e acima de tudo continuamos a sentir porque também nós somos humanos.
Espere de todos os profissionais de saúde aquilo que sempre nos caracterizou.