A inteligência artificial (IA) está aí. Entra nas nossas vidas em sítios onde nem damos por ela. Mas ela está lá. A dar-nos sugestões de coisas que gostamos, em jogos que jogamos, no nosso carro… Está por muitas áreas da nossa sociedade e, claro está, também na saúde.
Pelas diferentes profissões vai pairando, numas mais que outras, o espectro de que as máquinas nos vão retirar o emprego. A radioterapia, sendo uma área de grande tecnologia, está, com certeza, no lote das profissões ameaçadas, mas talvez não seja assim tão sombrio o papel do radioterapeuta.
Acompanho com alguma curiosidade a evolução da industria aeronáutica. Verifiquei que há algumas décadas esta industria foi invadida pela tecnologia e muitos foram os sistemas introduzidos de modo a melhorar a segurança das viagens aéreas. De facto, esta industria tem uma invejável cultura de segurança através da qual, sempre que acontecem incidentes ou acidentes, há uma investigação. Esta, é geralmente conduzida pelas autoridades mas também pelos fabricantes dos equipamentos em causa. Na verdade, esta investigação trata de muito mais do que apenas apurar responsabilidades. Vai também procurar e identificar potenciais falhas que contribuíram para a situação e emanar correcções que rapidamente são implementadas. Muito para aprender no que toca à saúde….
Mas existe uma razão para isto. Claro que a potencial perda de vidas é um bom motivo, mas o mediatismo e o alarmismo social é grande cada vez que um avião cai. Há algo em viajar pelo ar que desperta em nós medo e insegurança. Existe algo apreendido através da sociedade que nos deixa desconfortável com a ideia de estar preso a 12.000 metros de altitude.
Aqui existe, para mim, um paralelo com a radioterapia. Quando se pensa em radiação a mente vai para explosões com nuvens em forma de cogumelo, centrais nucleares, doenças genéticas, deformações e morte. Muito do que se passou no mundo desde a Segunda Guerra Mundial justifica isso. Bombas de Hiroshima e Nagasaki, o acidente de Chernobyl e mais recentemente o de Fukushima.
Tudo isto passa também a ideia de perda de vidas e um grande mediatismo e alarmismo social em redor das radiações.
“Tal como a industria aeronáutica foi invadida pela IA, também a radioterapia está a ser“
Mas vejamos o que se tem passado nos aviões. Criou-se a ideia de que, com sistemas suficientemente inteligentes, o piloto era dispensável, sendo relegado para um papel secundário que progressivamente desapareceria. Seguindo esta ideia um sem numero de sistemas foram introduzidos para fazer tudo e mais alguma coisa dentro de um avião.
Com os anos a passar e continuando a existirem incidentes e acidentes que foram sendo investigados, uma nova realidade surgiu. Algumas destas situações não teriam acontecido se esses novos sistemas não estivessem presentes… Uma nova ideia surgiu. Teremos nós tecnologia a mais dentro de um avião?
A ideia tem vindo a ser discutida e é ainda altamente controversa. Mas há algo que normalmente não faz parte desta discussão. Emoções. Do ponto de vista lógico é claro que uma máquina com um grau elevado de inteligência pode pilotar um avião com uma menor probabilidade de fazer asneiras do que uma pessoa. Mas quando nos confrontamos com aquele medo e insegurança de que algo pode correr mal, essa certeza ganha um contorno um pouco diferente.
“Considerem isto: Estão num avião que está prestes a despenhar-se. Quem preferem ter ao comando? Uma máquina ou uma pessoa?“
Não posso responder por todos, mas por mim, digo sem qualquer dúvida! Uma pessoa! Há algo na ideia de que em situações extremas, temos tendência a superar-nos. A conseguir o impossível. Há algo na ideia de que o facto de termos as nossas vidas entrelaçadas que me tranquiliza.
Não sou contra a introdução de novas tecnologias na saúde. Oponho-me sim à ideia de que vêm para substituir as pessoas. É óbvio que a IA tem o potencial para melhorar imenso a qualidade dos tratamentos que prestamos, mas é também óbvio que o fará com as pessoas e não sem elas. Tal como na industria aeronáutica o caminho tem que ser a IA a ajudar o piloto, sendo que o controlo se manterá dele.
A ideia de uma radioterapia sem pessoas é, para mim, inconcebível. Tratamos doentes oncológicos. Pessoas que viram as suas vidas para sempre alteradas por uma doença potencialmente fatal. Pessoas com vidas suspensas. Muitas vezes sem suporte familiar. Damasiadas vezes sem ninguém. Ao contrário do que alguns pensarão, o nosso trabalho é muito mais do que administrar radiações. Nós recebemos, ouvimos, ajudamos, partilhamos… Aprendemos lições de vida. Somos companhia, somos família, somos suporte… muitas vezes longe de casa… longe da segurança.
A ideia de saúde sem pessoas é absurda. Ao fim ao cabo, quem querem ter convosco quando vos disserem que têm uma doença potencialmente fatal? Nesse segundo que dura para sempre, se pára de respirar e se tem que encaixar a ideia do final da vida? Naquele momento em que o chão desaparece e toda a vida desaparece com ele. Querem lê-lo num monitor? Querem uma máquina a segurar-vos a mão? Ou querem alguém capaz de sentir e partilhar a vossa dor? Alguém que vos entenda e ouça? Alguém com quem chorar? Nunca uma máquina poderá fazê-lo. Por mais inteligente que seja nunca uma máquina conseguirá adquirir uma inteligência emocional. Compaixão, compreensão, empatia são alguns dos sentimentos que uma máquina nunca conseguirá experiênciar. E se por algum acaso um dia conseguir… é esse o dia em que deixamos de ser humanos.